quinta-feira, 31 de março de 2011

A Flor...

Ninguém tinha levado uma flor sequer para minha professora D. Cecília Paim. Devia ser porque ela era feia. Se ela não tivesse uma pintinha no olho, não era tão feia. Mas era a única que dava um tostão pra mim para comprar sonho recheado no doceiro de vez em quando, quando chegava o recreio.

Comecei a reparar nas outras aulas e todos os copos sobre a mesa tinham flores. Só o copo da minha continuava vazio.

[…]

Uma manhã apareci com uma flor para minha professora. Ela ficou muito emocionada e disse que eu era um cavalheiro.

[…]

A escola. A flor. A flor. A escola…

Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza.

Quando terminou a aula, me chamou.

- Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.

Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.

- Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade?

Balancei a cabeça, afirmativamente.

- Da flor? É, sim senhora.

- Como é que você faz?

- Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.

- Sim, mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”.

- Não é não, D. Cecília. O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também…

Ela ficou espantada com a minha lógica.

- Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro… E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.

Ela engoliu em seco.

- De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá?

- Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some…

- Eu não podia aceitar todos os dias…

- Por quê?

- Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda.

Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.

- A senhora não vê a Corujinha?

- Quem é a Corujinha?

- Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos e amarra com cordão.

- Sei. A Dorotília.

- É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre de mais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá, com ela.

Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo.

- A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda. Dindinha, minha avó, todo sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre.

As lágrimas estavam descendo.

- Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado.

- Não é isso, Zezé. Venha cá.

Pegou as minhas mãos entre as dela.

- Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé.

- Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa.

- Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete?

- Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio?

- Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu esta flor foi o meu melhor aluno. Está bem?

Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura.

- Agora pode ir, coração de ouro...


José Mauro de Vasconcelos, O Meu Pé de Laranja Lima


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