sábado, 6 de dezembro de 2008

O Trigo Mourisco

Muitas vezes, após uma trovoada, ao passar por um campo de trigo mourisco, pode ver-se como ficou todo chamuscado. É como se o fogo tivesse passado por ele e o camponês dá-nos a explicação seguinte: Foi um raio. Mas porquê? Pois vou contar-lhes o que disse, a um pardal, um velho salgueiro que se encontrava perto de um campo de trigo mourisco e ainda lá está. É um salgueiro grande e venerável, mas enrrugado e velho, um pouco rachado ao meio, com uma fenda onde crescem ervas e sarças. A árvore está um pouco tombada para a frente e os ramos pendem para o solo, como se fossem uma longa cabeleira verde.
Trigo mourisco
Em toda a volta havia campos de cereal, de centeio, de cevada e de aveia, a bela aveia que, quando está madura, parece um imenso bando de pequeninos canários amarelos pousados num ramo. Os cereais são assim uma bênção de Deus e quanto mais pesados estão, mais baixo se inclinam em humildade.
Mas havia também um campo de trigo mourisco, bem perto do velho salgueiro, que nunca queria inclinar-se como os outros cereais; mantinha-se sempre direito, orgulhoso e altivo.
- Sou tão rico como a espiga de trigo - disse ele.
- Sou, além disso, mais bonito. As minhas 15 flores são tão belas como as da macieira, e é um regalo olhar para mim e para a minha floração. Conheces algo de mais belo, velho salgueiro?
O salgueiro abanou a cabeça, como quem diz "pois claro que conheço", mas o trigo mourisco inchou de orgulho e exclamou:
- Árvore estúpida, tão velha estás que te crescem ervas na barriga!
Então rebentou uma terrível trovoada. Todas as flores dobraram as folhas ou inclinaram as cabeças, enquanto passava a trovoada sobre elas. Só o trigo mourisco continuava com a cabeça erguida, no seu orgulho.
- Baixa a cabeça, como nós! - disseram as flores.
- Não tenho nenhuma necessidade disso! - respondeu o trigo mourisco.
Salgueiro

- Baixa a cabeça como nós! - gritou o trigo. - Vem aí o Anjo da Tempestade! Tem asas e com elas alcança tanto o céu lá em cima como a terra cá em baixo. Pode ceifar-te sem teres sequer tempo de pedir-lhe mercê.

- Está bem, mas eu não vergo! - retorquiu o trigo mourisco.

- Anda, fecha as flores e dobra as folhas! - disse o velho salgueiro. - Não olhes para cima, para os raios, quando as nuvens rebentam. Nem os próprios homens o podem fazer, pois por eles é possível olhar para dentro do Céu, mas isso é bastante para os cegar. E o que nos aconteceria a nós, plantas da terra, se o ousássemos fazer, nós que somos muito menos?

- Muito menos? - disse o trigo mourisco. - Pois vou mesmo olhar para dentro do Céu!

E foi isso que fez, com presunção e orgulho. Caiu então uma faísca tão grande que parecia que toda a terra ardia em chamas.

Aveia Quando o mau tempo passou, sentiram-se as flores e os cereais numa atmosfera calma e pura, refrescada pela chuva; mas o trigo mourisco ficara completamente queimado, reduzido a carvão pelo raio. Era agora uma erva inútil e morta no campo.

O velho salgueiro agitava os ramos ao vento e deixava tombar grandes gotas de água das suas folhas verdes, como se chorasse. Os pardais perguntaram-lhe:

- Por que estás a chorar? Não é tudo maravilhoso? Repara como brilha o Sol e deslizam as nuvens. Não sentes o perfume das flores e dos arbustos? Por que choras, pois, velho salgueiro?

Então, o salgueiro falou-lhes do orgulho e da presunção do trigo mourisco e do seu castigo.

É sempre assim. Eu, que escrevi este conto, ouvi-o de uns pardais. Contaram-mo uma tarde em que lhes pedi uma história.

in Terra do Nunca

[suplemento infantil do Jornal de Notícias]

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